Senti que algo estava errado desde que entrei naquela casa pela primeira vez.
Assim que atravessei o batente da porta principal da residência que meus pais
haviam comprado com o pouco de dinheiro que lhes restara da herança do vovô,
logo fui recebido por um calafrio que arrepiou todo os pelos de meu corpo.
Mas, aparentemente, eu fui o único a sentir isso; meus pais e irmã mais nova
não falaram nada, nem expressaram.
A mudança foi tranquila e sem nenhum problema aparente. Porém uma semana
depois, comecei a perceber mudanças sutis nas coisas ao meu redor. Após o
banho, em um dia qualquer, senti uma presença estranha do lado de fora do box
e quando puxei a cortina, tudo estava normal: apenas minhas roupas empilhadas
no chão, a toalha pendurada no suporte de metal na parede e a escova de dente
no copo ao lado do espelho embaçado pelo vapor d’água. Nessa mesma noite,
comecei a ter pesadelos horríveis com morte por esquartejamento e muito
sangue, não por mãos humanas, mas por uma força maligna escondida nas trevas.
Pesquisei na internet e encontrei, antes de dormir, relatos sobre o Povo das
Sombras.
First things first
I'ma say all the words inside my head
I'm fired up and tired of the way that things have been, oh-ooh
The way that things have been, oh-ooh
Meu celular despertou na hora agendada ao som de Imagine Dragons, e acordei
para um dia normal.
― Bom dia, docinho! Senta aqui e toma seu café ― minha mãe me disse, sorrindo
como sempre, quando abri a porta do quarto. Tomei café com minha família.
Minha irmã estava atrasada, como sempre, e meu pai precisou cortar seu café
pela metade para deixá-la na escola antes de ir trabalhar. Meu dia foi cheio
de tarefas para a faculdade, e, novamente, tudo estava bem e normal até eu
chegar tarde em casa e passar pelo portão. Podia sentir que alguém me
observava… Talvez estivesse a espreita entre os pinheiros do jardim, mas com
os muros altos, seria difícil ter pulado. Ainda assim, a sensação permaneceu.
Puxei a chave do bolso, mas a porta estava destrancada. Cocei a cabeça; que
estranho. Chamei, mas não havia ninguém em casa. Preparei algo para comer
enquanto passava alguma coisa aleatória na TV e aumentei o volume para ouvir o
alerta urgente de que uma família havia sido atacada e brutalmente assassinada
no mesmo bairro. O casal e a filha mais nova foram levados para a perícia no
Instituto Médico Legal, mas a filha mais velha estava desaparecida.
― O caso apresenta um cenário complexo, com indícios que apontam para duas
possibilidades contraditórias. A polícia trabalha diligentemente para coletar
mais informações e esclarecer se ela é vítima ou algoz. A investigação ainda
está em fase inicial, e novas evidências podem surgir a qualquer momento. Eu
sou a repórter Laura Melo, da cidade de Bom Jardim, para o TVN News.
O que me chamou a atenção era que ela tinha a mesma idade que eu e frequentava
a mesma universidade. Poderia ela ser do mesmo curso? Ainda não conheço todo
mundo… Eles também haviam se mudado há pouco tempo.
O mais sinistro é que as filmagens da câmera de segurança da casa iriam
ajudar, porém foram totalmente danificadas; havia interferência nas imagens e,
por isso, levaram para análise de profissionais.
Desliguei a TV e levei meu lanche e um copo de suco para o quarto em uma
bandeja, liguei o som e matei minha fome. Depois do lanche, adormeci e tive o
mesmo sonho da noite anterior…
Eu estava em casa jogando videogame quando as luzes falharam e o aparelho
desligou. Não dei bola no início e apenas apertei o botão de ligar,
esperando enquanto o jogo carregava. Senti um nó na garganta ao perceber que
todo o progresso que eu havia feito no fim de semana não havia sido salvo
corretamente e xinguei uns cinco palavrões diferentes. Foi nesse momento que
uma sombra estranha me chamou a atenção no canto do quarto. Averiguei e,
aparentemente, era do cabide que pendurei no abajur da escrivaninha; não dei
bola.
A luz falhou novamente, deixando apenas a lâmpada da mesa acesa, e a sombra
de uma garra se levantou pela parede, mas não conseguia ver quem poderia
ser. Não havia mais ninguém além de mim! No momento em que a garra abaixou,
ela alcançou minha perna direita e algo invisível me tocou na coxa, perto da
virilha, até pouco antes do joelho, fazendo jorrar sangue com pressão da
ferida. Era frio e preciso como uma faca afiada. Gritei de dor e,
automaticamente, acordei de mais um pesadelo.
Ainda era de noite. Incomodado, levantei a barra da bermuda até poder ver o
arranhão que havia ali, avermelhado, e em alguns pontos havia gotas de sangue,
como se tivesse sido feito há pouco tempo. Foi um sonho muito vívido, mas como
poderia me arranhar dessa forma dormindo?
Bufei, sentindo a dor me puxar para a realidade. Precisava estancar o sangue
vermelho-escuro, que escorria lentamente por minha pele. Busquei por qualquer
tecido à minha volta e segurei um grito que veio até minha garganta; o
ferimento ardia muito. Peguei uma camisa usada para estancar o sangue e saí à
procura da caixinha de primeiros socorros; lá tinha o que eu precisava para me
cuidar.
Abri a porta do meu quarto e estiquei o braço até o interruptor da sala mais
próximo; porém, algo pulou em cima de mim, fazendo-me cair para trás, batendo
a cabeça no chão. Tentei me desvencilhar, sem sucesso. Com certeza, não era um
humano em cima de mim segurando meus braços e pernas, mas também não entendia
o que poderia ser, embora tivesse um cheiro insuportável.
Como fedia! Era um cheiro de carne podre misturado com enxofre. Seu corpo era
forte em cima de mim, mas parecia fazer parte do traje negro e esvoaçante,
como os dementadores.
Um sorriso maquiavélico, com dentes amarelados e podres, apareceu na face
enegrecida, e um sentimento de desespero e agonia, puxou toda a minha energia
como um buraco de singularidade sugando a luz e tudo em seu horizonte de
eventos.
Preso entre o ser e o chão, ambos gelados como a neve, a sombra fez um convite
nada tentador através de um resmungo rouco e agonizante de dor. E, do mesmo
jeito que ele apareceu, sumiu no ar como fumaça ao vento. Levantei-me
aliviado, sentindo o coração bater no ouvido. Minhas pernas falharam uma, duas
vezes, mas consegui permanecer de pé na terceira tentativa.
Não havia ninguém em casa. Respirei aliviado; que alívio não terem chegado
ainda. Do jeito que eu estava vestido, pensei em correr para fora de casa sem
nem olhar para trás. Conseguiria um telefone com algum vizinho ou outra pessoa
na rua para avisar minha família, mas nessa casa não poria meus pés novamente.
Abri a porta da frente e já estava claro como o dia. Fiquei confuso por um
segundo, porque o sol já estava se pondo no horizonte; era o final da tarde.
Teria eu passado um dia inteiro em choque? Mantive meu foco em sair dali, mas
alguém abriu o portão. Minha visão ficou turva por um momento e decidi me
esconder entre os pinheiros.
ERA EU!!
Quando ele passou perto de mim no jardim, pude ver melhor e percebi que ele
tinha o mesmo corpo que o meu, o mesmo andar e estava usando a mesma roupa que
eu usei na noite anterior. Um frio percorreu minha espinha.
“Será que o sonho foi…?”
Não importa. Eu preciso avisá-lo do perigo que ele — digo, eu corro. Joguei
algumas pedrinhas para tentar assustá-lo, pois eu bem sabia o quanto era
medroso. No entanto, o outro eu continuou marchando para o horror sem um pingo
de temor e bateu a porta ao entrar.
Minha visão ficou turva novamente e me apoiei no muro atrás de mim. Ao longe,
ouvi sirenes de vários veículos diferentes se aproximando e me mantive atrás
da árvore. Nesse momento, carros de polícia e ambulâncias pararam em frente à
minha casa. O que estava acontecendo?
Um bombeiro forçou o portão de alumínio, dando passagem para os policiais que
corriam em grande número para dentro da casa. Alguns voltaram na mesma
velocidade em que entraram, golfando na brita.
― Deus tenha misericórdia dessas almas ― disse um deles, tirando a boina e
fazendo o sinal da cruz.
A equipe de socorristas saiu um atrás do outro, carregando seus equipamentos
intocados, e ouvi quando um investigador falou com o policial no comando.
― Tenente, a situação aqui é bastante grave. Localizamos três vítimas fatais,
todas com ferimentos dilacerantes, típicos de ataques de animais selvagens. Os
corpos estão espalhados pela cozinha e pela sala. A vítima mais jovem, uma
adolescente de 13 anos, estava próxima ao pai, no sofá, e a mãe na cozinha. Os
documentos das três vítimas estão aqui.
― Não temos registro de ataque de animais selvagens aqui... Isso é muito
estranho. Obrigado Investigador Lopes ― o Tenente puxou seu radio do colete e
passou a mensagem ― Central, QRA¹ Tenente Tavares. Alerta de desaparecimento!
Solicito buscas imediata por Carlos Barros, 20 anos, na região Norte, bairro
Saguaçu. Há fortes indícios de que ele possa ser a quarta vítima ou o autor
dos crimes de homicídio. Não foi visto desde ontem à tarde. Indivíduo vestindo
jaqueta jeans e mochila. Reforçar a segurança da equipe. QSL?
― Positivo. Atenção a todas as unidades próximas ao bairro Saguaçu…
Meus sentidos falharam nesse momento ao ouvir o policial. Eu havia sido
atacado, eu estava fugindo à procura de ajuda. Como posso me tornar um
assassino fugitivo do dia para a noite? Meus pensamentos revoltos foram
interrompidos por completo quando outro carro oficial branco chegou e
profissionais com uniformes pretos escritos “IML” nas costas saíram do
veículo: um com uma pilha de sacos pretos para cadáveres e outro com uma maca
de remoção dobrável.
Primeiro foi minha mãe, depois meu pai e, por último, minha irmã. Todos
suspiraram enquanto os corpos eram transportados até os carros, e suas
expressões eram de lamento. Meus olhos marejaram, deixando minha visão
embaçada. Minhas pernas falharam novamente, mas elas não tocavam mais o chão.
Outra pontada na cabeça me deixou tonto e me fez cair no gramado com as mãos
na cabeça. Meu corpo doía, e minha visão começou a escurecer cada vez mais
até…
First things first
I'ma say all the words inside my head
I'm fired up and tired of the way that things have been, oh-ooh
The way that things have been, oh-ooh
¹ Códigos Q utilizados:
QRA: Nome do operador
QTH: Localização
QRM: Interferência (neste caso, utilizado para indicar uma situação de
emergência)
QSL: Entendido
Revisão por Emilly Domingos
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Um grande abraço e obrigada pela leitura!
Com carinho,
Escritora Aline Duarte
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