As sombras se esticam na noite, e algo mais antigo que o tempo aguarda.
Não são todas as travessuras que terminam em doçuras.
― Philip! Anda logo, já está todo mundo lá na rua nos esperando! ― Anna,
uma tenebrosa bruxa de Salem, com nariz verrugado preso por um elástico por
cima da orelha, um vestido roxo de cetim com detalhes em renda e um enorme
chapéu pontudo pendendo para o lado, calçando sapatilhas decoradas com aranhas
de plástico, carregando em suas mãos um pequeno caldeirão preto escorrendo
sangue falso, na faixa dos cinco anos de idade, gritou para seu irmão mais
velho, um adolescente do oitavo ano vestindo roupas de adolescente do oitavo
ano.
Ele resmungou antes de levantar da cama e descer preguiçosamente a escada, que
termina em frente à porta da frente, e resmungou mais ainda com a cara feia de
seus pais quando eles reclamaram porque ele não estava vestido com a fantasia
feita artesanalmente em família durante o mês de outubro.
É uma tradição da família e do bairro, sair no dia 31 de Outubro, depois da
abertura do evento na praça principal, às cinco horas da tarde, na casa dos
vizinhos pedindo doces ou distribuindo travessuras. O filho mais novo coleta
os doces e o filho mais velho faz as travessuras, uma brincadeira saudável
passada por gerações, nada que agrida nenhum ser humano ou animal, ou a
natureza.
No ano anterior, um senhor muito rabugento e mal educado da Rua Dos Mortos (no
Halloween as ruas ganham novos nomes, o nome correto é Rua das Orquídeas, por
causa dos enormes jardins de orquídeas em cada esquina), se recusou a
distribuir os doces, Philip e seus amigos da escola ficaram a madrugada
inteira fazendo barulhos e rangidos na casa desse senhor até ele ligar para a
polícia dizendo que tinha espíritos de Halloween na casa dele. Foi muito
engraçado.
Alguns amigos de Anna já os esperavam do lado de fora, era quatro e meia da
tarde, os dois irmãos se despedem do Shrek e da sereia Ariel e caminham lado a
lado até a calçada, onde seguem junto com seus vizinhos até a praça central,
se encontrando no caminho com outros amigos.
Às cinco em ponto o Drácula, digo, o prefeito da cidade, da início ao evento
dessa noite que não tem hora para acabar, distribuindo saquinhos feitos de
tecido e com cara de abóbora laranjas com olhos e dentes pretos cheios de
doces diversos e pequenos mapas de tamanho quadrado, com estatísticas de quais
casas dão mais doces e quais já sofreram travessuras nos anos anteriores.
Pegando seu saquinho, a bruxa horrenda Anna, seu irmão Philip e alguns amigos
zumbis, aranha e os gêmeos duendes, saem pelas ruas decoradas para o
evento.
Latas de lixo laranja com caras de abóboras decoram as
calçadas das ruas, igual o saquinho de balas do prefeito, as casas possuem
balões nas varandas, pisca- pisca de fantasmas, muitas velas e teias de aranha
nos quintais. Na casa do Curinga e da Arlequina, o jovem casal sem filhos,
Maison e Lucia tinham uma noiva cadáver no alpendre. Na casa do Pânico e da
Unicórnio, senhor e senhora Leightsson, galhos secos e caveiras assustavam
crianças pequenas.
Já era passada das oito horas e Anna e seus amigos descansam em umas abóboras
que serviam de decoração na calçada da Rua do Assombro, e eles se divertiam
falando sobre suas experiências da noite, em quais casas receberam sustos, e
em quais ganharam mais doces, preenchendo o pequeno mapa que será atualizado
para o próximo ano, até que ouvem um barulho estranho, um gemido misturado com
urro de animal, vindo do cemitério, no final da rua.
Todos logo se alarmaram, olhando uns para os outros e recolhendo seus doces,
enchendo bolsos e sacolas, pois seus baldinhos trazidos de casa já estavam
transbordando.
― Não deveríamos estar aqui- disse o Zumbi, um garoto da idade de Philip,
cabelos pretos curtos e corpo atlético- estamos muito perto do cemitério
antigo, sabemos que o prefeito só proíbe o cemitério antigo neste dia. Ele
estava certo e com medo, mas para Philip isso foi um desafio.
― Eu vou lá, o prefeito só quer nos encher de medo no dia de Halloween, só
porque lá é o melhor lugar para se fazer travessuras ― disse Philip
mexendo os dedos como os mágicos em cima de suas cartolas. E partiu rumo o
portão do cemitério.
Um arco de ferro que formavam o nome do cemitério guardava o portão principal,
mais uns barulhos estranhos foram ouvidos, o que fez o pequeno grupo se
encolher mais um pouco ficando mais unidos. Philip não teve problema em abrir
o portão velho de ferro enferrujado que rangeu mesmo Anna tendo certeza de que
não vira o irmão encostar-se ao portão. E ele caminhou até o grupo o perder de
vista.
― Não deveríamos ter deixado meu irmão ir ― Anna disse ao menino zumbi, e
em um tom mais alto- muito menos sozinho!- Ana fitou o rapaz com raiva.
― E você acha que alguém ia conseguir parar ele? ― A maioria concordou, sabem
quanto Philip é teimoso.
Anna lidera o grupo até o portão do cemitério, por onde viu pela ultima vez
seu irmão Philip, claro que o medo a assombrava, sentia um misto de ansiedade,
medo e calafrios, mas de longe era a mais corajosa do grupo de crianças e
adolescentes, Philip a ajudou com isso, com travessuras durante o ano todo.
Quando estavam apenas três metros do portão, olhos arregalados fitaram Philip
caminhando tranquilamente com as mãos nos bolsos e um olhar estranho. "Esse
não é o meu irmão" Anna pensou e recuou alguns passos.
― Eu disse que lá não tinha nada! ― Philip de repente disse sorrindo e
abrindo os braços.
― Ei cara, onde conseguiu essa fantasia de Dona Morte? ― Disse o Demônio,
vizinho da rua de trás do Zumbi.
― Essa fantasia eu e minha família fizemos ― ele respondeu olhando para
sua irmã, fazendo os outros olharem na sua direção, ela alguns passos mais
distantes agora- é tradição, não é irmã?
A criança apenas assentiu, o medo estampado na testa e o cheiro de morte no
ar. Algo no baldinho dos vizinhos chamou a sua atenção, o sangue da decoração,
que antes era seco, agora estava mais brilhoso, gosmento e escorria até pingar
no chão, e os doces se mexiam, pareciam ter vida.
Logo todos perceberam para onde Anna olhava e ao olhar para seus baldinhos os
jogaram no chão incrédulos, o que tinha acontecido? Era travessura dos
vizinhos que lhes deram os doces? Na dúvida largaram no chão assustados.
Philip, ou o quem quer que seja, tinha o olhar e o sorriso presunçoso
estampados na cara, então Anna começou a andar, de costas mesmo, se afastando
mais, depois se virou para andar mais rápido e depois a certa distancia a
correr. Ninguém mais entendeu nada e o grupo começou a seguir a criança, com
Philip na retaguarda.
Estavam tão absortos no que poderia estar acontecendo que não notaram que por
onde Philip passava, a decoração ia criando vida, e saia à caça de alguém para
matar. O esqueleto na porta do senhor e senhora Magisters, primeiro acertou o
cachorrinho que dormia a seus pés, com o gancho, já que ele era o esqueleto do
Capitão Gancho, depois quebrou o vidro da porta para destravá-la.
Philip atrasou o irmão mais novo do Zumbi, o segurando na retaguarda do grupo,
que foi pego de surpresa pelo cavalo sem cabeça do vizinho da frente do
esqueleto. Quando o garoto gritou de dor, o grupo percebeu o que estava
acontecendo silenciosamente atrás deles. Zumbi desacelerou os passos para
voltar e ajudar o irmão, mas o Demônio e sua irmã Anjo, o impediram,
apressando o passo e tentando se afastar de Philip. E as decorações
continuavam criando vida para matar.
― Esse ano vocês não vão escapar de mim! ― Aquele que possuía Philip
gritou para o grupo que corria à distancia ― vamos amiguinhos, temos essa
cidade para tomar ― e saiu caminhando até chegar em frente à sua casa, seguido
pelos seus liderados. Caminhou até a porta principal, fazendo as aranhas
gigantes do chão saírem andando e os morcegos pendurados saírem voando.
A casa estava vazia e silenciosa, mas encontrou sua irmã encolhida em seu
armário perto da janela. A criança podia sentir o cheiro de morte que exalava
do que antes era seu irmão, ela sentia muito medo e sabia que era o fim.
― Olha quem está aqui... ― e a menina gritou.
― Ei, calma, o que aconteceu? Eu estou aqui ― o adolescente do oitavo ano
vestindo roupas de adolescente do oitavo ano abraçou a criança com fantasia de
bruxa que chorava e se debatia muito, e a ninou até se acalmar.
― Foi horrível ― ela disse e tornou a choramingar.
― Calma maninha, foi só um pesadelo. Agora vamos, são quatro e meia e estão
todos nos esperando lá fora. ― Ele dá um beijo na irmã e caminha para
fora do quarto.
Conto O Cemitério, por Aline Duarte, 22/10/2017.
Se gostou, compartilhe para que mais rabiscadores possam ler!
Um grande abraço e obrigada pela leitura!
Com carinho,
Escritora Aline Duarte
0 comments:
Postar um comentário