Prólogo - ASCENDENTE

O céu da pequena cidade praiana estava sem nuvens naquela noite e Clara olhava atentamente a cada pontinho cintilante naquele mar de esc...

═══ • ◆ • ═══ Tenha coragem para enfrentar o seu destino, seus medos e arrependimentos ═══ • ◆ • ═══ A jeitando a franja na testa, que estav...

• Quatorze • ASCENDENTE

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Tenha coragem para enfrentar o seu destino,
seus medos e arrependimentos

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Ajeitando a franja na testa, que estava em alta na época assim como o macacão jeans, tênis branco e moletom que vestia, Pandora observava seu reflexo no espelho. Aurora, que esperava sua irmã terminar de se arrumar sentada no puff branco redondo, vestia os mesmos modelos de roupas mudando apenas a cor do moletom e do tênis e mais alguns detalhes das peças.

— Mana, nós vamos nos atrasar — Aurora alertou a irmã olhando o relógio de pulso com números romanos que antes era de seu pai.

Arrumavam-se para irem ao curso, enquanto Pandora iria aprender a diferentes técnicas de massagem e drenagem linfática enquanto Aurora iria aprender limpar a pele com cremes, esfoliantes e tonificantes, com as mãos firmes e olhos atentos ela faria procedimentos com agulhas e outros maquinários estéticos. As gêmeas almejavam ser referência em técnicas de rejuvenescimento das camadas de pele.

Ambas eram vaidosas e sempre acompanhavam as tendências de estética, maquiagem e moda, sempre testando novos produtos sendo cobaia uma da outra. Elas amavam isso e escolheram que seria sua profissão e seu ganha pão, estudando para trabalhar na área atendendo mulheres da alta sociedade, talvez até modelos.

Para chegar até a escola, as gêmeas precisariam ir de ônibus até a capital, na ilha, cerca de trinta quilômetros da pequena cidade de Cerca Grande. Henrique sabia dirigir e tinha veículo, mas com seu trabalho diurno ele acabava sem tempo para acompanhar as irmãs. Não antes de ensinar a malandragem da rua para elas não serem alvo nas mãos de rapazes de mente fraca que buscavam por presas fáceis.

A pequena viagem até a capital durou menos de meia hora, saíram do ponto de ônibus intermunicipal na beira do acostamento da rodovia sentido sul, uma construção de cimento coberta por uma telha ondulada de eternit, e iam até o ponto mais próximo da escola. O clima estava agradável e por ser um horário de pouco movimento, o veículo fez poucas paradas no caminho, diminuindo o tempo de viagem.

A capital era também a maior cidade do estado e antes de descer do ônibus, olhando através das janelas retangulares com bordas arredondadas, já era possível ver a diferença entre sua cidade e Ilha Bela. Os prédios se erguiam do chão até quase o céu, as avenidas eram longas e cheias de carros de todas as cores e modelos em todos os sentidos e a ponte que ligava o continente à ilha era magnífica, tanto de dia quanto de noite quando suas luzes noturnas eram acionadas. Fotógrafos ganhavam muito dinheiro com belas fotografias tiradas da gigantesca construção. Pandora gostava de admirar as construções e por esse motivo às vezes era fácil perder a hora.

— Que revestimento incrível fizeram nessa fachada, Aurora, lembra como era antes da reforma?

— Lembro sim, mas vamos nos apressar para chegar na hora, mana!

O pequeno palácio dos anos 20 onde hoje era uma escola de cursos técnicos estava muito bem conservado, as paredes pareciam ter sido pintadas recentemente e não havia nenhuma marca preta proveniente de água da chuva parada. Entraram pela porta principal do prédio bem conservado e aguardaram na recepção suas respectivas professoras chamarem. Ali naquele saguão qualquer um poderia ter a impressão de que o tempo não havia passado, uma viagem no tempo até quando aquela magnífica construção era o lar de umas das famílias de maior posse em Ilha Bela. Não eram seus fundadores, mas chegaram lá pouco tempo depois.

Os móveis da recepção foram feitos sob medida para o ambiente com madeira nobre com um espaço para a profissional datilografar e outro para atender o telefone de disco, tudo sem sair da decoração principal. Na parede dos fundos continha gavetas para arquivos do dia a dia.

Emília era recepcionista da escola havia muitos anos, seu sorriso era doce e sempre com seu uniforme impecável, saia reta e longa abaixo dos joelhos cor cinza escuro, camiseta branca e suéter também cinza gola "v". Assim que Emília notou a presença das meninas ela checou o relógio de pulso com tira de couro, levantou-se e caminhou até os arquivos para pegar o papel de presença das gêmeas, um no separador A e outro no P, logo as irmãs se aproximaram do balcão para assinar.

— Como estão meninas? — perguntou docemente a recepcionista de quase trinta anos, que não mostrava nenhum sinal de idade na face polida com pouca maquiagem.

— Estamos bem, obrigada por perguntar, Emília — respondeu Aurora antes de pegar a caneta para assinar seu nome na linha pontilhada ao lado da data já datilografada.

— E como foi seu final de semana? — Pandora perguntou com um olhar sugestivo e malicioso. Emília chamou as meninas mais perto para poder cochichar.

— Como foi o fim de semana e ... — alguém entrou na pequena sala fazendo ecoar seus saltos, as moças se sobressaltarem assustadas, cortando o assunto na hora.

Era Alessandra, uma das professoras da escola que nenhuma das três gostavam, então resolveram terminar de assinar os papéis em silêncio sob o olhar reprovador da tal professora, que percebendo o clima que acabara de criar no ambiente propositalmente, continuou seu trajeto satisfeita e sem interromper os passos. O momento desconfortável passou rapidamente até que mais alunas chegaram e as professoras vieram até a recepção chamar seus alunos.

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Luana tentava se concentrar no que a sua mãe lhe dizia enquanto sentia seu estômago revirar, mas era quase impossível e em meio segundo ela correu até o banheiro e golfou no vaso sanitário.

— Menina, o que andou comendo? — perguntou sua mãe achando ser apenas uma indigestão. Ela não conseguiu responder, inclinando a cabeça na cerâmica novamente jorrando o resto do líquido estomacal.

A moça lavou o rosto e tentou tomar os remédios que sua mãe separou para tentar passar os sintomas pós-festa, mas Luana sentia que não era como das outras vezes e recorreu às suas amigas. Custou a caminhar até a casa das gêmeas, até porque já estava totalmente escuro e uma jovem sozinha na estrada naquela hora não era bem visto pelos vizinhos, mas por sorte passou por ela um carro conhecido que parou ao seu lado.

— Henrique? — a jovem perguntou ao se curvar para ver o motorista.

— E aí? O que aconteceu, Luana? Está com uma cara péssima — o rapaz observou. A jovem que tinha a pele bronzeada estava pálida tanto como seu cabelo loiro, se sentia fraca, além dos enjoos constantes.

— Eu realmente não estou nos meus melhores dias. As gêmeas já chegaram?

— Já chegaram sim, entra aí — diz se esticando para abrir a porta por dentro para ela — tenho algo para esse mal estar.

De carro o percurso de quase quarenta minutos a pé durou apenas dez seguindo o mesmo trajeto, e logo o rapaz manobrou na garagem.

As gêmeas já tinham tomado banho e vestiam seus pijamas de dormir sentadas no sofá de couro rodeadas por cadernos e apostilas com imagens de rostos femininos aguardando o irmão chegar com as misturas para o jantar. Ao ouvir a porta da garagem se abrir elas correram até lá e ficaram muitos felizes ao verem sua melhor amiga, mas logo perceberam que ela não estava bem.

— Venha para nosso quarto, vamos conversar — Pandora guiou a amiga pelos corredores neutros da casa até o quarto rosa.

Cada uma se aconchegou em uma cama e Luana no puf de frente para as gêmeas.

— Como se sente, Lua? — Aurora perguntou.

— Estou com os mesmos sintomas de ontem, mas pior — desabafou a moça às amigas.

Aurora ainda quis saber se a amiga já tinha tomado algo para tentar ajudar, talvez levar ela ao médico, e Luana respondeu o que sua mãe já tinha a medicado.

— E se estiver grávida? — perguntou Pandora pensativa com sua voz mansa.

— Como assim grávida? O que você entende de gravidez, Pan? — foi a vez de Luana arregalar os olhos incrédula por esse pensamento ter passado pela cabeça de sua inocente amiga.

— Vamos dizer que você e Rodrigo se cuidaram em todas as relações — Pandora rabiscava o caderno que trouxe consigo e enquanto falava, desenhava as anatomia da pele delineando o folículo piloso — ainda pode existir uma possibilidade.

— Todas sabemos que por mais que se cuide, ainda está sujeita, que o único jeito de ter risco zero de gravidez é não fazer sex... — foi interrompida pela amiga que correu até o banheiro da suíte para golfar novamente.

As gêmeas se entreolharam compartilhando do mesmo pensamento.

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Perdida em pensamentos Luana tentava se manter calma, mas o clima hospitalar do pequeno posto de saúde perto da sua casa a deixava pouco confortável e ainda mais assustada do que parecia.

Na época em que vivia não existia muita tecnologia, mas sua mãe não precisou dela para descobrir que tinha algo de diferente no corpo de sua filha, e quando Luana passou o segundo mês sem usar o devido cuidado íntimo para as regras, seu sensor de mãe soou e decidiu tomar as devidas providências. Luana ainda era menor de idade, e mesmo se não fosse dona Cida a acompanharia aonde fosse, para não se sentir de fora e também para dar o amparo que só ela poderia oferecer.

O posto abriu as portas quando era sete em ponto e depois de esperar sua vez na fila e dar entrada no atendimento, Luana esperou ser chamada pela enfermeira para passar pela triagem, que consistia em anotar nome e idade, medição da temperatura, altura e peso, era uma etapa apenas para controle. Caroline, a enfermeira que atendeu a jovem moça na salinha, verificou depois das medições que os dados colhidos estavam dentro dos padrões e a liberou em seguida para esperar a sua vez para então ser atendida pelo clínico geral em seu consultório. Esse sistema era um pouco burocrático e todo manual, e por isso demorou um pouco, mesmo tendo poucas pessoas naquele dia para serem atendidas.

— Conte-me o que aconteceu senhoritas — Doutor João Ramalho, o médico, disse cordialmente depois que chamou a moça da porta se sentando em seguida que ela e sua mãe entraram no consultório fechando a porta atrás de si.

— Então doutor, percebi algumas coisas anormais com a minha filha e decidimos verificar como anda a saúde da minha filha. — Dona Cida tomou a palavra e explicou o que estava acontecendo, ela tinha alguns palpites, mas queria ter certeza com o resultado de exames e não acabar assustando sua filha. Essa senhora não era estudada, mas aprendeu muito com a vida na roça.

O médico pediu para que a moça se sentasse na maca, ele iria fazer alguns exames de rotina em seu consultório como medir seu batimento, respiração, e depois de deitada com o abdômen à amostra, ele fez um exame de toque para saber se a moça sentia alguma dor na região. Doutor Ramalho pode tirar algumas conclusões iniciais, mas assim como pensou Dona Cida, ele não quis alarmar nenhuma das mulheres, agora sentadas, à sua frente. E por último fez uma série de perguntas, anotando as respostas em seguida em uma folha de papel com os dados dos exames anteriormente colhidos.

— Com essa conversa consegui fazer um prognóstico, mas ainda preciso de outros exames mais esclarecedores — ele rabiscava alguma coisa no receituário — tudo bem?

Mãe e filha assentiram sem saber o que pensar, as palavras do médico tinham pesos distintos entre elas. Dona Cida sentiu um frio na barriga quando o médico anunciou isso, era como se ele tivesse confirmado seus pensamentos em silêncio. Ela sempre observava e cuidava de perto a filha e mesmo sendo teimosa às vezes, ela jamais tinha saído da linha, e a incerteza da obediência da filha agora lhe chamava mais a atenção do que o próprio caminho, topando o dedão na calçada, por sorte estava de braços dados com sua filha única que não caiu de cara no chão.

Luana, portanto, tinha ouvido alguma coisa entre as meninas da escola sobre doenças que eram passadas durante uma relação, e ela tinha pavor só de pensar que poderia ter contraído alguma de Rodrigo e por isso o médico havia pedido por mais exames.

Um rapaz que lhe trouxe tanta dor e desgosto, mas mesmo assim ela o amava.

Com o encaminhamento que doutor João Ramalho entregou à sua mãe, Luana poderia realizar os exames solicitados no laboratório da sua pequena cidade no dia seguinte e então sanaria toda e qualquer dúvida sobre seu atual estado de saúde.

Mãe e filha iam embora com tantas dúvidas quanto chegaram no posto de saúde, mas tentavam ao máximo não transparecer o que sentiam. Ainda cheias de dúvidas, as mulheres Lyra seguiram pelas ruas de chão esburacadas até a escola de Luana, ainda era cedo, mas já tinha perdido algumas aulas e sua mãe precisava justificar para que ela pudesse assistir as próximas.



QUINZE

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